Artigo
Gilberto Kassab: Um banho de higiene na peste
Em texto publicado no Diário de S. Paulo, o presidente nacional do PSD destaca a importância de os governantes, inclusive os que serão eleitos este mês, focarem sua atuação na melhoria da saúde pública.
arquivos | 03 novembro 2020
Higiene é uma palavrinha danada. Antes de se transformar em substantivo era um adjetivo, e veio do grego: hygeinos significava, qualificava “o que é são, sadio, saudável”. A deusa grega Hígia (chamada de Salus pelos romanos) também teria dado origem à palavra higiene. Em latim, Salus gerou salud em espanhol, que significa “são, sadio, saúde”. Apesar de primas-irmãs e meio-empatadas nas origens, vejam vocês, a higiene não constava dos dicionários do século XIX. E a nossa saúde vivia apanhando de pestes, epidemias.
O que importa, e como estamos vendo, é que a higiene se mostra um cuidado, uma arma vital, fundamental para controlar, circunscrever a ação da Covid-19, que continua crescendo nos EUA e, em nova onda, atemoriza e desafia a Europa. A OMS é taxativa: não haverá vacinação geral antes de 2022. Então, até que se viabilize a aprovação e produção de uma vacina de qualidade, eficaz e segura, o planeta deve, com disciplina e criatividade, seguir enfrentando os problemas econômicos oriundos das limitações da atividade econômica e conviver inteligente e equilibradamente com a pandemia.
Resumindo: não há solução a curto prazo. A história das vacinas está aí para provar isso e, mais complexo: com um vírus planetário, pandêmico e desafiador. Que sobrevive quando se pensava, na Alemanha, Reino Unido, Portugal, Espanha, Itália, que ele já estivesse fragilizado, à beira do nocaute. A história e o combate ao segundo pico no Vietnã e Coreia do Sul ainda têm muito a nos ensinar. A cultura dos países, seus hábitos sociais, alimentares, costumes, situação climática, estado dos biomas e biodiversidades locais, tudo ainda vai requerer estudos e mudanças; exigir nova arrumação, novas atividades e maneiras de viver e conviver socialmente serão testadas. Exigirão – além de grande dose de calma e equilíbrio – muita inteligência em adaptações duradouras, até que a vacina mágica e realmente segura e eficaz, dê as caras.
A propósito, Ken Frazier, CEO de uma das principais produtoras de vacinas do mundo (Merck & Co), lembra que o processo é realmente demorado, bem demorado. Afirma que a vacina mais rápida a passar pelos testes todos e ser colocada no mercado foi a da caxumba: levou 4 anos. Ainda na entrevista à profa. Tsedal Neeley, da Harvard Business School, Frazier cita outros exemplos: Ebola, 5,5 anos (e só agora foi aprovada na Europa); tuberculose, 13 anos; rotavirus, 15; catapora 28. E é muito claro: “No caso da Covid 19, nem sequer entendemos o vírus em si ou como ele afeta o sistema imunológico”.
Citamos essa informação, abalizada, não para desanimar ou criticar governantes, nem para dizer que americanos, chineses, russos, franceses e outros não estejam correndo, rápido e responsavelmente, contra o tempo. Muito menos para assustar ainda mais os 85,3% dos brasileiros que, diante de um imunizante 100% testado e aprovado, segundo a revista Nature, pretendem se vacinar contra a Covid-19 (“A sociedade sabe o que quer” – Estadão, seção Notas e Informações, pág A3, 25 de out).
E Frazier termina a entrevista com um recado, meio advertência, direto para governantes do mundo todo que decidirão se a vacina, testada, aprovada, segura e eficaz, deve ser aceita, financiada, viabilizada e aplicada: “Precisamos de políticos que tenham a vontade e a integridade para contar a verdade às pessoas”, diz o CEO da Merck.
Aqui no Brasil, o Butantã e a FioCruz, instituições centenárias, responsáveis e capacitadas, já deram mostra – com inúmeras vacinas – que estão habilitadas a fazer, corretamente, a testagem completa, fabricação e, também, a entrega das vacinas ao Ministério da Saúde, para a aplicação nos brasileiros. O Butantã, por exemplo, tem um histórico exemplar: é de sua fabricação 75% de todas as vacinas até hoje entregues ao Ministério da Saúde, e que imunizaram milhões e milhões de brasileiros.
Mas não politizemos nem percamos o foco deste artigo, a higiene e a saúde. A história nos chama e nos ensina. Seria normal que através dos séculos, hábitos de limpeza corporal evoluíssem, melhorassem. Certo? Vejamos:
Por volta do ano 3.000 a.C., no Egito, em rituais sagrados, banhistas ricos e pobres acreditavam que a água purificava a alma. Esse hábito de higiene evitou que os egípcios não fossem dizimados pelas pragas e doenças que assolaram a Antiguidade.
Entre, 1.700 a 1.200 a.C., nos palácios de Cnossos e Faístos (na ilha grega de Creta), além de banquetes, convidados tinham direito a sessão de banhos. De 800 e 400 a.C., a natação era um dos 3 pilares da educação dos jovens, ao lado das letras e da música.
Já em 380, no Cristianismo em Roma, os romanos herdaram muito da cultura grega. Além do imenso império que construíram pelas armas, levaram seus balneários públicos para França e Alemanha. Com o cristianismo, o império romano veio abaixo, os prazeres do banho foram boicotados por 5 séculos. A higiene sofreu um baque mortal. O prazer do banho passou a ser visto como um ato de luxúria. Lavar as mãos e o rosto já era o bastante. Quando muito, era aceitável tomar um banho por ano.
Bem, poderia me ater a um enorme número de exemplos de falta de higiene. Mas vamos aqui saltar dezenas de pestes, doenças que mataram milhares de pessoas, e dar uma parada aqui na chamada Cracolândia, em São Paulo, onde um candidato, contrariando a ciência, numa reflexão apressada, enviesada, acabou dando a entender que, por não se banharem, moradores de rua não pegaram a Covid-19 e talvez tivessem desenvolvido algum tipo de imunidade. Nossa! O que nos remete novamente – como relatamos acima – à quase proibição total de banhos, e se conservava o “cascão” e a pele endurecida para evitar que micróbios, bactérias e vírus entrassem corpo adentro das pessoas e as matassem com doenças demoníacas. Ufa!
Haja também dezenas e dezenas de exemplos de higiene para provar que era e é exatamente o contrário. E que o banho era sim – e voltaria a ser – um símbolo de limpeza e saúde. E que nos séculos 18 e 19 se provou, definitivamente, que as doenças se originavam não do banho, mas da falta dele. Até hoje. Cada pessoa usa e consome em média 200 litros de água e produz cerca de 160 litros de esgoto e 500 gramas de lixo por dia. Contados aí banho, água que se usa para fazer comida, higiene das mãos, para lavar louça e dar descarga no banheiro.
O acúmulo do lixo caseiro – e de dezenas de outros dejetos, industriais, hospitalares, mercúrio de mineração, etc – no meio ambiente, pode contaminar o solo, o leito dos rios, o mar, os alimentos, e se transformarem em veículos de moléstias, epidemias e até de pandemias. Ao longo do tempo, fomos adotando práticas de higiene vitais para manter nossa saúde. Diz a OMS: “Saúde é a sensação de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.”
A humanidade caminhou bastante. Aqui no Brasil também, desde a chegada da família real. E hoje seguimos caminhando, mas falta muito ainda: segundo a nova Lei de Saneamento, o novo Marco Legal deve estar implantado até 2033. Isso mesmo: só daqui 13 anos teremos 99% da nossa população com acesso à água potável; e 90% com serviço de coleta de esgoto. Hoje, são quase 100 milhões de brasileiros (47% da população) sem acesso à coleta de esgoto, e 35 milhões sem água tratada.
Mantendo nosso foco (saúde), esse é um problema. E, de fato, não nasceu neste governo. Foi agravado pela pandemia (pela situação adversa da economia, queda do PIB, etc.), e cá estamos diante do vírus invisível, imprevisível. Com uma longa, urgente e permanente lição de casa para manter a higiene pessoal, corporal, em casa e fora dela. Na escola das crianças, explicando normas fundamentais de asseio, higiene, limpeza.
Enfim, sim, temos – governo e Congresso – enfrentado e resolvido problemas, como reforma previdenciária, para citar mais um além do saneamento; temos relação de prioridades e urgências a serem recebidas do executivo, debatidas à procura de consensos, como reforma administrativa, tributária, o novo orçamento, auxílio emergencial, renda Brasil. Também fará muito bem à saúde a retomada do desenvolvimento, privatizações, criação de empregos, redução das desigualdades sociais.
Anos difíceis pela frente. E daí?
Daí, meus amigos prefeitos e vereadores que vêm por aí, governadores que aí estão – é arregaçar as mangas e mergulhar no trabalho. Juntos, unindo esforços, propondo sacrifícios e passando por uma zona cinzenta de muitos desafios, temos de olhar – e enxergar – todos, ou os mais importantes. E resolvê-los. E assim, de eleição em eleição a democracia enche o papo.
E, na saúde, abaixo o papo-furado: um banho de saúde na peste!
Artigo publicado no jornal Diário de S. Paulo em 31 de outubro de 2020